À margem do mar e da vida

 
Melancolia, de Edward Munch.

Hoje, como em tantos anos desde então, me peguei lembrando de um momento triste que há muito me marcou. Quando era pré-adolescente, fui com uns parentes a uma pizzaria na beira-mar de Olinda, feliz, alegre, porque gostava muito de lá. Pedimos o sabor de sempre, meu preferido, e quando a pizza chegou em nossa mesa, uma criança, de minha faixa etária, sentou na calçada do estabelecimento, ao lado da porta, com um olhar muito triste. Lembro de ouvir meu parente reclamar daquela situação, afirmar que deviam expulsá-lo, que aquilo era desagradável, enquanto eu parecia escutar, a partir dos olhos daquele menino, que ele não queria incomodar, mas que sentia fome. 

Nunca esqueci de sua aparência: era um rapazinho com uns 11 anos, branco, de cabelos castanhos e de porte físico semelhante ao meu. Naquele momento, tive o anseio de pegar umas fatias e levar até ele, para aliviar seu sofrimento, o que minha timidez impediu, me paralisou, fazendo o arrependimento me corroer ainda ali, porque a criança não saía de minha mente.

Lembro de olhá-lo com tanta dor que parecia que eu estava em sua posição, especialmente enquanto as outras famílias saíam e o ignoravam por completo. Ninguém o ajudou. Ninguém se solidarizou com uma criança faminta, que devia ter tantos sonhos, planos, e até, talvez, uma família que sofresse tanto quanto ele sofria. Pedi a Deus que o ajudasse; era o que conseguia fazer. Minha timidez era tão limitante naquela época.

Por sorte, ao sairmos, meu parente se arrependeu do que disse, e antes de entrar no carro, voltou e lhe deu as sobras. Não era o ideal, não nego, pois havia dinheiro suficiente para comprar algo novo, mas, de qualquer forma, aquilo já era um alento. Era uma ajuda. Mesmo assim, o rapaz não desviou o olhar de mim. Era como se ele fosse um irmão, carne de minha carne, que pelas ruas perambulava sofrendo a crueldade de um destino perturbador.

Sei que não creio que haja injustiças no mundo, e sim que todos nós passamos por provas, umas mais severas que outras, para que essas experiências nos auxiliem na caminhada da vida eterna. No entanto, naquele momento, eu somente conseguia ver um ser humano, um pré-adolescente que sofria, uma criatura frágil que necessitava de proteção e cuidados. Como foi triste! Não há como descrever com precisão!

Também não entendo por que aquele momento tanto me sensibilizou, já que a desigualdade social está presente no cotidiano e nunca se fez ausente em minha existência, mas o que posso afirmar, mais uma vez, é que nunca me esqueci, nem por um momento, como se fosse um trauma consciente de uma experiência angustiante. 

Como comentei, era como se ele fosse um irmão consanguíneo que há muito não via. Um amigo de longa data, que depois de tantos anos sem notícias, surgia, em sofrimento. Foi terrível. Ainda hoje, principalmente em dias de chuva, rezo por ele, imaginando que talvez esteja passando frio ou que já tenha falecido, para que eu escolha, no fim, acreditar e pensar que ele se reergueu e que obteve o devido auxílio dos Céus.

Das profundezas de meu coração, desejo que ele seja feliz, ainda mais do que foi em todas as suas existências, pois somente os fortes aceitam duras provas, e das batalhas difíceis surgem as grandes conquistas! 

Todavia, a desigualdade social é triste, e não há como suavizar. A vulnerabilidade, especialmente de uma criança, é cruel. Tão bom seria se a sociedade evoluísse. Tão justo seria se todos tivéssemos as mesmas oportunidades!

É uma lástima que sejamos, ainda, tão minúsculos diante de tantas possibilidades que visam a dignidade dos nossos iguais, pois hoje há como viabilizar qualquer transformação. Não estamos mais no passado, não há como justificar. Por isso, e por fim, só sei pedir que Deus nos guie na construção de uma sociedade mais honrada para não mais vivermos na perpetuação da crueldade que nos desonra, e guardo a certeza de que, apesar de qualquer coisa, um dia chegaremos lá, cedo ou tarde.

Comentários

  1. Nossa, que triste🥺 O mundo seria bem melhor se as pessoas tivessem a sensibilidade e humanidade que vc tem.

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  2. Que relato forte! O mundo precisa acordar para o que está bem abaixo de nossos olhos. ❤

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  3. A realidade é chocante quando paramos pra pensar nas pessoas que não tem as mesmas oportunidades que as nossas. Devemos ser gratos pelo o que temos e ajudar o próximo da melhor forma sempre que necessário!
    Lindo e reflexivo relato.👏

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