O apagamento de uma existência diante da ausência
Há, a cada dia mais, a propensão à ideia de que uma vida somente se inicia no parto e que qualquer gestação interrompida pela natureza não participa da história, especialmente da genealógica. No entanto, eu discordo veementemente, porque é incompreensível não acreditar que uma mãe que gerou nunca foi mãe apenas porque não pôde pegar seu filho nos braços. Para mim, o fato de a criança ter sido acolhida e, a partir do momento da descoberta da gravidez, aceita, é suficiente para que ela possua um galho na árvore de sua família. Porque, se a vida é uma coleção de memórias, toda existência é uma lembrança, e, se esses nenéns, dentro do ventre materno, forneceram memórias aos seus, então viveram, porque suas existências impactaram outras. Do modo que lhes foi possível, alteraram a dinâmica familiar e acrescentaram maior volume à história de sua estirpe.
Ademais, muitos desses bebês iniciaram suas histórias ao terem nomes escolhidos, padrinhos convidados, futuros imaginados e sentimentos despertados. Um pai e uma mãe de um filho não nascido também são um pai e uma mãe, e seu fruto é, também, um filho — e não apenas porque seus corações assim sentiram, mas, especialmente, porque assim o foram. Um corpo ainda é um corpo, mesmo quando está em formação, pois não somos móveis que precisam estar completos para serem o que são. Nós somos, simplesmente, porque somos. Nada mais do que isso.
E, se a genealogia hoje já reconhece e valoriza tantas realidades, como a multiparentalidade, a adoção, o compadrio, a transsexualidade, os afetos etc., por que insiste em perpetuar o apagamento de certas existências? Por que ainda colocamos como "sem filhos" aqueles que geraram algum? Por que dizemos que alguns não tiveram irmãos se seus pais se reproduziram mais? Isso é cruel. Não é compreensível, porque a história familiar não mais se resume à transmissão de DNA entre as gerações, mas ao registro de todas as vivências.
Além disso, colaborar com o silenciamento de maternidades e paternidades gestacionais é, sem dúvida, fortalecer violências às quais são submetidas famílias enlutadas, vulneráveis em todos os espaços e momentos. É reforçar o trauma que cerca esses familiares, que não mais falam de seus bebês como falam de seus pais e avós que partiram, porque não puderam aprender a lidar com a dor, sempre tão invalidada.
Portanto, não podemos persistir numa visão extremamente materialista da genealogia, capaz, até, de ignorar a existência material de um ser em formação. Pois, se o estudo de uma linhagem, hoje, compreende tanto o sangue quanto a socioafetividade, então os galhos dessas crianças lhes pertencem e devem estar reconhecidos em nossos diagramas, porque um bebê que partiu no ventre uniu ambos os tipos de laços. Como afirmou a influenciadora Rafa Kalimann no último Dia das Mães: "nós que perdemos nossos nenéns, também somos mães".
Admiro muito tudo que você escreve!!!
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