O Abraço do Mar
Réveillon de 1970, praia de Boa Viagem, no Recife.
A moça Maria das Graças, chamada de Gigi por seus amigos mais próximos, estava sentada na areia, próxima ao calçadão, quando a virada do ano aconteceu. Estava sozinha, e os estalos dos fogos de artifício que coloriram o céu despertaram seus pensamentos ansiosos. Por ter completado a maioridade civil há poucos meses, sua juventude se alimentava da angústia dessa fase. Ao observar aquelas luzes sobre o mar, a menina questionava sua capacidade de trilhar um caminho bonito na vida adulta, o possível alcance dos seus sonhos e o destino da sua vida nos próximos dias. Embalada por suas dúvidas, ela chorava copiosamente, quando foi interrompida pelo surgimento inesperado de uma mulher negra ao seu lado.
Devia ter cerca de 40 anos, era linda e tinha um olhar muito bondoso. Seu vestido branco, ilustrado com corais azuis, destacava o formato do seu corpo e iluminava seus cabelos cacheados. Com uma voz terna, a mulher enxugou suas lágrimas e lhe disse:
— Moça bonita, por que tanto sofrimento? Acaso não confias na vida? Ouça o teu coração, veja o que o som das batidas do teu órgão te diz. Carregas em tua alma a força necessária para combater tuas adversidades e encontrar o caminho para a felicidade. Não notas o quanto já és feliz? Nunca percebeste que todos te amam? Tu és doce, criança, por que julgas que encontrarás amargos frutos? É certo que nunca deixarás de ter dificuldades, mas a tua colheita sempre te garantirá alegria. Ela é incessante! Não duvides de ti, minha filha. Eu creio e sinto a tua energia! Dá-me cá um abraço.
E, abraçando Gigi, beijou-lhe a testa, levantou-se e, sem se despedir, partiu sorrindo.
A jovem ficou olhando-a caminhar, impactada e feliz, até a desconhecida sumir de seu campo de vista. E, quando isso aconteceu, Maria piscou os olhos, abrindo-os no exato momento em que a mulher antes surgira, durante o fim do espetáculo dos fogos de Ano Novo, como se o tempo houvesse parado ou como se a experiência não fosse mais do que um sonho.
Sentia-se alegre, finalmente, e também cansada. Decidiu levantar-se da areia e retornar à pensão em que estava residindo temporariamente, ali mesmo na beira-mar. Descansou profundamente em sua cama de colchas e travesseiros azuis, e teve uma noite tranquila, com sonhos repletos de afetos, onde se via em bosques bonitos e em banhos de mar, acompanhada de presenças queridas de familiares e amigos.
No outro dia, ao despertar já perto do fim da manhã, pensou incessantemente nas palavras da desconhecida e em como ela lhe havia feito bem. Imaginava que talvez a mulher não soubesse o quanto a havia impactado. Lembrando-se do seu rosto com carinho, abençoou-a em seu íntimo com amor.
Não esqueceu o que a angustiava, entendendo tão bem quanto antes que ainda precisava conquistar muitas coisas. Contudo, sentia agora que tudo daria certo. Ponderando que a pensão em que vivia era um favor financeiro de uma tia, que, pensando em oportunidades futuras, lhe havia presenteado com alguns poucos meses naquela hospedaria, Gigi decidiu ir, já no dia 2, batalhar por seu destino. Relembrando que devia confiar em si, separou alguns papéis, arrumou-se com visível cuidado e seguiu pela cidade a pé, de estabelecimento em estabelecimento, de escritório em escritório e de barraca em barraca, procurando um emprego, até encontrar-se com uma velha conhecida, chamada Isabela.
— Bela, querida! Quanto tempo!
— Gigi! Que surpresa!
Abraçaram-se, e Maria das Graças, com um sorriso largo no rosto, continuou:
— Nosso encontro é um feliz presente para mim! Há tantos anos que desejo te rever. Ainda vives em Olinda? Eu vim para cá há poucos meses, mas não sei se continuarei...
— Nada, amiga. Hoje eu vivo aqui, nesse prédio que está à nossa frente. Casei-me com o Geraldinho, lembras dele? Formou-se advogado, abriu um escritório com meu primo Pedro e agora vivemos muito bem. Só não pude terminar o segundo grau... Todavia, a vida de esposa me faz muito bem!
— Não acredito! O Geraldinho! Nunca pensei. Vocês eram tão implicantes na infância... Fico feliz que encontraram a felicidade! Eu terminei o colégio no ano passado, ainda sou solteira, apesar de ter tido uns namoradinhos.
— Lembro bem do teu espírito apaixonado, Maria — respondeu a amiga com uma breve risada.
— Pois é, querida — riu Gigi.
E, lembrando-se de que ainda precisava continuar sua busca pelo trabalho, Maria das Graças disse:
— Vamos marcar um café, Bela. Colocar os papos em dia. Eu estou na pensão de dona Carmem, procure-me por lá! Vou precisar seguir agora, pois tenho que correr para pegar as lojas da outra avenida ainda abertas!
— Estás procurando ofício, amiga? Talvez eu encontre um para você. A secretária de Geraldinho pediu demissão porque engravidou, e a de Pedro não está dando conta das duas demandas. Se assim desejares, posso indicar-te a ele. O que achas?
A moça desempregada abriu um sorriso como nunca antes, abraçou fervorosamente a colega e respondeu:
— Eu acho a melhor ideia do mundo! Se fizeres isto, estarás me causando um bem sem tamanho! Muito obrigada!!
Os dias se passaram, e Gigi pensou que não fora qualificada, quando, em uma tarde de domingo, o marido de Isabela a ligou, marcando-lhe uma entrevista e demonstrando grande desejo em contratá-la.
Foi o início da felicidade da moça, que viveu grandes alegrias nos meses seguintes ao conquistar o trabalho. A amiga se aproximou ainda mais e lhe deu um afilhado, Luís. O patrão a adorou desde o início e, com três meses, lhe deu um aumento. Logo depois, reencontrou um antigo namorado, Jorginho, e recuperou a paixão, encontrando nele um parceiro alegre e fiel. Sua experiência no réveillon passado, que ainda vivia em seus pensamentos, foi compartilhada com o companheiro em dezembro de 1971, durante um passeio na praia de Casa Caiada, onde, ao ouvi-la, ele lhe fez o seguinte comentário:
— De certo, querida, você teve um encontro espiritual com alguma entidade benfeitora que talvez te tenha por filha!
— Ora, Jorge, não pensavas que acreditavas nisto! — respondeu Gigi assustada com a resposta inesperada.
Rindo, o namorado disse:
— Eu não só creio, como tenho certeza. Não tenho dúvidas de que foste acolhida pela luz divina naquele momento.
E avistando um homem que, com uma pequena carroça, vinha em sua direção, levantou-se e foi até ele.
— Parceiro, quanto estão as flores que estás vendendo? E apontando: estas daqui, brancas...
— 30 centavos cada, senhor.
— Dê-me duas, por favor.
Pagou-lhe e, sentindo com doçura o perfume das flores, dirigiu-se à Maria das Graças, entregando-lhe uma, que sorrindo, agradeceu, emocionada, pelo gesto terno. E assim, Jorginho prosseguiu:
— Venha cá, meu amor, te provarei que não estás só neste mundo.
Pegando-a pela mão, foram para a beira da água da praia. De um lado, seguraram cada um sua rosa, e no outro, deram-se os dedos. Jorginho virou o rosto à amada e disse:
— Pense na sua espiritualidade, Gigi, e agradeça, enviando essa flor àqueles que nos trazem a luz.
Maria, que de início pensou que era uma loucura ou uma brincadeira, decidiu que nada custava conectar-se a Deus na presença de sua gratidão e, oferecendo a rosa no mesmo instante em que o namorado, correu com ele para as ondas, mergulhando com alegria.
Abrindo os olhos debaixo d'água, viu-se em um belo local, onde os peixes ecoavam canções de ternura e embalavam a dança dos corais. Parecia estar no fundo do oceano, e a energia daquele momento era contagiante. No centro da cena, de costas, estava o que Gigi julgou ser uma divindade, imponente e alta, belíssima, com um corpo esbelto, um vestido largo e azul, pele castanha e longos cabelos negros, que, como se referisse a um lago tranquilo, eram lisos, no formato das águas. A entidade exalava uma energia de grande afeto, que Maria sentia com intensidade, fazendo-a, mesmo com tudo para temer, relaxar e sentir-se em casa. Quando entendeu o que estava acontecendo, lágrimas escorreram por seu rosto, e, tomada pela emoção, apenas disse:
— Mamãe!
A orixá virou-se para a direção da moça, revelando seu rosto com um sorriso amoroso e um olhar terno. Era a mulher que, no Réveillon passado, havia acalmado a angustiada Maria das Graças, e que agora se apresentava como Iemanjá, a Rainha do Mar. A jovem correu até a entidade, que se fez pequena como a humana, e deu-lhe um inesquecível abraço e um beijo na bochecha. Como antes, a protetora sorriu e retribuiu beijando sua testa. Gigi, então, lembrou-se da bisavó que conhecera na infância, negra como a Janaína, e que sempre lhe falava do amor que aquela orixá nutria por seus ancestrais, ensinando-a a nunca esquecer que a Rainha estaria sempre com ela.
O mar ouvindo os pensamentos e notando as lembranças da menina, percebeu que agora sua criança havia compreendido tudo e, com grande felicidade, fechou-lhe as pálpebras e, reafirmando sua paz, devolveu-a ao momento em que estava.
Maria levantou-se do mergulho e, avistando Jorginho ao seu lado, chorou copiosamente, emocionada, dizendo com alegria:
— Você estava certo, meu amor.
A partir daquele momento, Gigi nunca mais duvidou da presença do divino em sua vida, mesmo nos momentos de solidão física. Abençoou-se todos os dias e amou, com intensidade, a todos que, com ela, caminhavam, em espírito ou em carne. E, em todos os Réveillons seguintes, enviou flores e boas recordações à sua mãe Iemanjá.
Que maravilhoso esse conto, parabéns,uma história que envolve quem ler👏👏
ResponderExcluirum conto maravilhoso escrito por uma pessoa maravilhosa, otima escolha escrever sobre a rainha das aguas. 🤍
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