Oh, mia patria sì bella e perduta!
Francesco, para seguires os teus caminhos, viveste três vidas em uma. Nasceste, cresceste e morreste três vezes. Não foste santo; erraste muito, como um belo humano. Nos teus pecados, a vida floresceu! Dos teus erros, a minha vida. Existo, agradeço-te e te abençoo, como um neto que honra seu avô.
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Imagem gerada por IA. |
Eu tenho um carinho muito grande por um tetravô que, naturalmente, eu não conheci. Não é um sentimento muito compreensível, uma vez que ele viveu uma vida bastante dúbia e que sua história somente chegou até mim quando iniciei na genealogia. Sua partida anterior ao nascimento do meu bisavô impediu que os seus contos fizessem parte da minha infância, como fez os da sua filha Toinhinha, minha trisavó, sempre tão recordada pelo neto Alexandre, meu avô, que a amava bastante.
Assim, meu primeiro contato com a história do tetravô Francesco somente deu-se com a leitura do seu nome no assento de nascimento do meu tio-bisavô Paulo, onde estava com sua identificação aportuguesada como "Francisco Peixe" — a substituição dos nomes dos estrangeiros por variantes nacionais era uma prática comum em muitos países. Com isso, disquei sua variante portuguesa no Google e encontrei publicações "antigas" da sua bisneta Bernadete em uma plataforma de genealogia.
Esses posts indicavam que ele era italiano e que seus filhos eram de Carviçais — eu já sabia que Toinhinha era portuguesa, mas desconhecia sua freguesia de origem —, o que me surpreendeu e alegrou por demais. Eu tinha um ótimo ponto de partida e uma parenta — depois descobri que eram duas, pois havia também a irmã de Bernadete, Ceça, que se tornou minha grande parceira de pesquisa — que já havia trilhado parte do caminho do nosso antepassado.
O fato do meu ancestral ser originário da Itália foi uma grande surpresa para mim e para a minha família direta, uma vez que não imaginávamos haver sangue itálico na nossa linhagem. Eu, particularmente, fiquei extasiado. Quando criança, tinha uma fascinação tamanha por aquele país, a ponto de sonhar algumas vezes que estava por lá e que andava por ruas que nunca vi. Talvez minha paixão fosse fruto das histórias ouvidas da família da minha bisavó paterna, Lúcia: a nossa estirpe Sivini é oriunda de Casalbuono, em Salerno.
Ao conseguir contato com a Ceça, pude ter acesso a alguns relatos da vida do tetravô, o que me ajudou bastante a desenvolver melhor a história da nossa família. No entanto, minhas parentas haviam focado no período português da nossa linhagem e eu queria muito descobrir a comuna de nascimento do nosso antepassado Francesco, saber quem foram os seus pais e irmãos. Tendo esse objetivo, segui a investigação, sempre em contato com a minha estimada parenta Ceça, e consegui êxito na pesquisa: nós somos provenientes de Trecchina, em Potenza.
Os pais do meu tetravô foram o ferreiro Giacomantonio Pesce e a fiandeira Rosa Maria Schettini, que estavam próximos de celebrar o primeiro ano de casamento quando o filho nasceu, em 1838. Apesar dessa rápida gestação, o casal não era muito fértil e demorou para gerar novos rebentos: o avoengo Francesco somente fora promovido a irmão mais velho próximo de completar seu quinto ano de vida e no dia do trigésimo quarto aniversário do seu pai.
Meus pentavós nomearam o segundo filho como Michele, em honra ao irmão mais velho e grande amigo do meu ancestral Giacomantonio. Mais tarde, a homenagem tornou-se ainda mais significativa, pois esse meu tio mais velho veio a ser um marco importante na história da nossa família: ele foi o primeiro a deixar Trecchina para buscar uma vida na Península Ibérica. No início da infância do sobrinho homônimo, meu tio-pentavô partiu para exercer a função de ferreiro na Espanha e deixou para trás sua esposa, Maddalena, e suas crianças, para nunca mais vê-los ou enviar notícias.
O terceiro menino da família nasceu quando o meu tetravô Francesco estava próximo do seu décimo primeiro ano de vida, e, assim como a criança anterior, o caçula também veio ao mundo na data do aniversário do pai. Chamaram-no Eusebio. Contudo, desse meu tio-tetravô, não tenho nenhuma informação. Cogitei que ele faleceu em tenra idade, mas não encontrei seu assento de óbito nos anos da sua infância. Hoje, creio que ele sobreviveu. Minha hipótese é de que o tio Eusebio não saiu de Trecchina, cresceu, nunca casou e nunca gerou descendência. Entretanto, apesar da minha teoria, também há a possibilidade dele ter migrado para outro país ou região. Só o tempo de pesquisa responderá, futuramente.
A infância dos três irmãos fora comum e eles foram criados para exercerem a profissão do pai, isto é, para serem ferreiros, como era o costume naquele tempo. Meu tetravô Francesco desempenhou o ofício desde muito jovem, e diferente dos seus pais, felizmente, conseguiu se letrar. Aos 20, casou-se. Sua noiva pertencia a família Pignataro e chamava-se Marianna (Marianina). Assim como ele, a jovem era muito humilde e proveniente de trabalhadores.
Logo veio a primeira gestação do casal, antes das bodas de papel, como ocorrera anteriormente com os meus pentavós. A criança nasceu em 24 de agosto de 1859 e foi chamada Emidio, Giacomo (em honra ao pai de Francesco). Certamente, muitas expectativas foram geradas para o menino, mas, tristemente, nenhuma delas eram concordantes com os planos do destino: meu tio-trisavô finou-se com apenas 1 ano e 3 meses de vida. Sem dúvidas, causando muito sofrimento.
Seu santo onomástico (Emidio) era o padroeiro dos agricultores, e sua comuna, muito rural, não era de muitas riquezas. Ainda que fosse uma vila muito linda, localizada em uma área montanhosa, banhada por um clima tipicamente mediterrâneo, a vida era muito difícil por lá. O Sul da Itália sofria com muita fome e instabilidade política nesse período.
O segundo menino dos jovens nasceu quatro anos depois do primogênito, no dia 30 de novembro do ano de 1863. Chamaram-no Giacomo Antonio, numa clara lembrança ao irmão, e, novamente, ao avô. Todavia, esse renascimento da linhagem fora coincidente com o momento do tetravô Francesco seguir sua trajetória, significando que o meu tio-trisavô cresceria sem o pai e que a Marianna teria que o criar sozinha.
No ano seguinte ao nascimento da criança, meu avoengo, em companhia do seu mano Michele Antonio, partiu para a península que décadas antes havia acolhido o irmão do pai deles. No entanto, diferentemente do tio, que foi para a Espanha, meu tetravô e seu irmão foram para Portugal, especificamente para a aldeia de Carviçais. Naquela época, essa freguesia estava com oportunidades de trabalho para caldeireiros e com uma pequeníssima comunidade de imigrantes vindos da Basilicata.
Foi nessa localidade que o meu avoengo conheceu a Maria da Conceição, uma adolescente luso-italiana que era filha do seu conterrâneo e muito afastado parente Gaetano Palmieri. Meu tetravô não era um marido fiel para a Marianna e rapidamente envolveu-se com a moça, tornando-a sua concubina e com ela gerando um filho, a quem nomearam Henrique Luís. Em 1868, meu avoengo Francesco viajou para Trecchina com o intuito de visitar a sua família legítima. Durante esse reencontro, novamente engravidou a sua esposa, e, como é presumível, não acompanhou a gestação. Deixou-a só, retornando para Carviçais.
A criança nasceu em dezembro daquele mesmo ano e foi a primeira menina da família, sendo então batizada Rosa (Rosina), em honra à mãe do meu tetravô Francesco, sua avó. Para que a minha tia-trisavó não fosse registrada como filha de mãe solteira (melhor, adúltera), foi necessário que Francesco Lamberti, sobrinho do meu pentavô Giacomantonio, confirmasse a paternidade da filha do primo e a fidelidade da sua familiar. Eu acredito que o meu avoengo depois disso nunca mais retornou a Trecchina, uma vez que os seus filhos declararam não saberem onde viviam o pai ao se casarem em 1885 e 1886. No entanto, devo ressaltar que, apesar da ausência, o meu tetravô recebia notícias da família. Estava sempre informado, na medida do possível.
No ano seguinte ao sucedido, o avoengo Francesco tornou-se novamente pai de uma menina, dessa vez por meio do relacionamento mantido com a minha tetravó Maria da Conceição. Sua segunda criança foi chamada Ernestina de Jesus, e curiosamente, veio ao mundo apenas quatro dias depois do primeiro aniversário da tia Rosa. Com o fortalecimento da união dos meus antepassados, as meninas foram logo sucedidas por mais irmãos: Augusto Alfredo, José Augusto, Adelina da Conceição, Francisco António e Laura Júlia, essa última nascida em 1 de abril de 1880.
Todavia, como o meu tetravô era um homem casado, todos os filhos da tetravó Maria foram batizados sem o reconhecimento da paternidade, inseridos em uma situação que somente modificou-se poucos meses depois do nascimento da tia Laura, com a morte da Marianna Pignataro em 31 de agosto daquele ano. A consorte do meu avoengo partiu antes dos próprios pais, Giuseppe e Mariantonia, e deixou seus dois filhos ainda na fase da adolescência. Naturalmente, seu viúvo soube da sua morte, e seu luto intensificou-se em novembro, quando sofreu mais uma perda: seu afilhado e sobrinho, Santiago da Encarnação, descansou aos 6 anos de idade, no auge da infância e durante uma gravidez da mãe, Maria Joaquina, cunhada do compadre. A família foi bastante afetada emocionalmente com a sua partida.
A minha trisavó Antónia da Conceição nasceu em 1881 e foi a primeira filha da tetravó Maria da Conceição a ser reconhecida por meu tetravô Francesco no ato do batismo (naquela época, o sacramento era equivalente ao nosso registro de nascimento). Felizmente, os irmãos que a sucederam — João Batista, Maria Joaquina e Amândio Salustiano — também vieram nessa realidade mais digna (recordemos que ter ambos os pais em seus documentos é um respeito a honra da criança). No entanto, o casamento dos meus avoengos Francesco e Maria somente fora regularizado e realizado católicamente após o nascimento do caçula da família, próximo do momento em que meu tetravô, novamente, realizaria uma emigração, dessa vez para o Brasil, em companhia dos filhos Henrique e Augusto Alfredo.
O italiano sabia bem como era ser um estrangeiro, mas os seus dois rapazotes, não. Eles iriam experienciar aquela etiqueta pela primeira vez em suas vidas, para nunca mais deixá-las. Curiosamente, meus parentes não foram para o Rio de Janeiro ou para São Paulo, como era o habitual, e sim para Pernambuco, mais especificamente para Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata do Estado. Os registros indicam que desembarcaram no Porto do Recife em 8 de junho de 1887, por meio do vapor Tamar. Vieram em busca de melhores condições de vida para si e para a família que deixaram em Portugal, que, aos poucos, também deveria vir.
Nesse contexto, logo chegou a tia Ernestina. Ela desembarcou meses depois, em 29 de fevereiro de 1888, em companhia do seu marido, Álvaro, e grávida da única filha do casal, Márcia. Ao chegarem, seguiram para a cidade que acolheu os primeiros, por lá estabelecendo residência e estando próximos dos aparentados. Surpreendentemente, o relacionamento dos meus tios-trisavós acabaria por ensinar bastante às suas famílias, em especial ao meu tetravô Francesco: o tio Álvaro largou a mulher e a filha no ano de 1895 e desapareceu no mundo, não dando nenhuma notícia para a sua família. A separação deles coincidiu com a chegada do tio José Augusto no Brasil, em agosto daquele ano.
A presença desse membro da família tornaria o contexto ainda mais complexo, pois ele seria responsável por corrigir uma situação problemática. Meu tetravô Francesco, com mais de 50 anos de idade e mais de 10 filhos, reproduzia, mais uma vez, o cenário que anos antes havia proporcionado a finada Marianna: casado com a minha tetravó Maria da Conceição, deixada em território luso, uniu-se afetivamente com uma moça brasileira sem responsabilizar-se com sua esposa. Meu tio-trisavô, confrontado com o adultério do pai, tomou a atitude que nenhum dos seus três irmãos ousaram tomar: escreveu uma carta para a sua mãe mandando-a vir para Pernambuco resolver a situação do seu casamento. Diante disso, a tetravó Maria atendeu a sugestão do filho e logo seguiu viagem. Ao que tudo indica, veio sozinha, deixando seus filhos sob os cuidados da Adelina, sua herdeira mais velha em território português.
Como minha ancestral não era uma mulher muito passiva, logo resolveu sua condição. No entanto, estávamos em fins do século XIX, e a atitude mais adequada naquele período era aquela que preservasse a instituição sagrada do casamento. Sendo assim, minha tetravó resolveu perdoar seu marido e expulsar a concubina da casa. A tia Ernestina, entretanto, era mais corajosa que a mãe e a defunta madrasta. Ela não reagiu de maneira semelhante a nenhuma das duas. Do contrário, decidiu ir viver em Recife com Joaquim Dias Nogueira, seu verdadeiro amor. Entrou com um processo de divórcio em Portugal e seguiu sua vida. Adotou o nome "Isaura", desvencilhou-se do passado, e conquistou sua paz. Foi até mãe mais algumas vezes.
Após a família estar estabilizada, a tetravó Maria mandou chamar suas crianças que ainda estavam em Portugal. Com exceção da tia Adelina, que já era mãe e que decidiu viver em Matosinhos, no Porto, com seu companheiro Manuel Pinto da Silva, todos os filhos vieram, inclusive a minha Toinhinha. Eles desembarcaram em 8 de novembro de 1896 no Recife. Deviam estar extasiados por reverem o pai depois de tantos anos e por estarem em um país estranho em idade tão jovem. A trisavó, por exemplo, era apenas uma moça de 15 anos de idade. Felizmente, Toinha já havia sua identidade cultural formada ao vir para o Brasil. Ela não perdeu sua nação de origem, preservou até o seu sotaque, que era sempre recordado por meu avô.
Ter uma família tão numerosa e próxima deve tê-la ajudado a manter-se portuguesa. Ao que tudo indica, minha trisavó era muito próxima dos seus irmãos, em especial do tio José Augusto, um professor muito conectado às suas origens. Eu acredito que foi por ele que Toinhinha conheceu seu marido, meu trisavô Fortunato. Meu tio-trisavô devia ser amigo do também professor Gaurino Gonçalves de Albuquerque e Silva, tutor e irmão do meu taravô. Certa vez me disseram que a família não concordava com o enlace dos meus trisavós e que foi preciso muito esforço deles para conseguirem casar. Todavia, não é uma história muito credível, por muitas questões. O que é, sem dúvidas, verídico é que eles contraíram matrimônio em 1899, na casa do meu tio José Augusto, que aparentemente foi padrinho do casamento, em Nazaré da Mata.
O jovem casal era bastante fértil e foram pais de Maria Dolores, em 1901, e de Paulo, no ano seguinte. Esse período foi marcado por muitas gestações na descendência do meu avoengo Francesco, e as crianças devem ter sido celebradas por toda a parentela. Nessa época, meu tetravô e parte da sua família, como a minha trisavó Toinhinha, estavam vivendo em Jaboatão dos Guararapes. Meu ancestral agora era industriário e um idoso com mais de 60 anos, que não havia tido uma vida fácil. Desde sempre, meu tetravô havia trabalhado arduamente e enfrentado muitas batalhas, tendo experimentado muitas emoções.
Há quem afirme que o desequilíbrio emocional cause a morte pelo coração, e curiosamente, foi por meio desse órgão que o corpo do meu tetravô perdeu o sopro da vida. Era o ano de 1905, minha trisavó Toinhinha estava à espera do terceiro filho, meu bisavô Edmundo, quando o pai faleceu. Meu avoengo Francesco desencarnou no fim da madrugada do dia 9 de junho, em sua casa, deixando 13 filhos, mais de 20 netos e um bisneto, entre italianos, portugueses e brasileiros.
Por aqui, eu poderia concluir, mas quero antes compartilhar uma experiência que me marcou bastante, onde uma ocasião me recordou a vida do meu tetravô de uma maneira profundamente emocional. Eu estava no meu último ano do Ensino Médio, e minha professora, Raquel, decidiu levar a minha turma para assistir as apresentações do Dia da Música e da Poesia (Semana Nacional do Livro e da Biblioteca), que estavam ocorrendo na Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, que é bem próxima da escola em que eu estudava, em Recife.
Assim que chegamos, passamos a prestigiar o Coro de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música, que, no início, interpretou apenas coros em latim e em francês. Os idiomas que eles estavam utilizando não eram do meu conhecimento e, ainda que isso não tenha impedido o meu encantamento, fez com que eu desejasse que interpretassem algo em italiano, uma vez que este, sim, eu compreendo um pouco.
Coincidentemente, logo depois foi a vez do "Va, pensiero", que eu nunca havia escutado e que marejou demais os meus olhos. A sensação que eu senti ao ouvir tudo aquilo era de estar diante da figura do meu tetravô, que me falava, em seu idioma, sobre a saudade que tinha da sua terra e da sua vida. Naquele momento, eu soube o quanto estava conectado às minhas raízes e com a história do meu avoengo, percebi o tanto que as marcas da imigração demoram para largarem uma linhagem que ela, a migração, formou. O sentimento pode ser escondido ou camuflado pelo tempo, mas não é morto pelo passar dos anos e das gerações.
Reconhecer isso é fundamental para compreender a própria identidade. O meu tetravô foi essencial para a minha existência, e sua vida será sempre respeitada por mim. Sua coragem nos trouxe ao Brasil, e os erros que cometeu deram origem a toda minha família. A sua história não é apenas um passado; é parte de cada um de nós. Não somos apenas sua continuidade, mas também sua própria presença, e por isso, devemos honrar a sua memória. Seu legado corre em nossas veias, sempre recordando-nos que somos frutos da sua trajetória e das suas escolhas.
Sem palavras!! Cada publicação é um maravilhoso mergulho de aprendizado. Perfeito, forte e emocionante.
ResponderExcluirBela Publicação,com todos detalhes
ResponderExcluirParabéns, bela publicação.
ResponderExcluirArrasou de verdade🫶🏽✨
ResponderExcluir😍😍😍😍
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